As batas brancas estão longe de ser garantia de protecção para aqueles que as envergam enquanto cuidam de quem precisa de cuidado. Margarida Sampaio não precisa que a cicatriz que tem no punho a recorde daquela dura madrugada em que um doente a agrediu, no Hospital Egas Moniz, em Lisboa. A enfermeira não precisa de olhar para a marca que sobrou dessa noite, porque é sem esforço que várias vezes se lembra daquilo que passou. Até porque as dores que ainda sente quando faz esforço não a deixam esquecer. A operação a que teve de ser submetida na tentativa de resolver o problema ainda é recente – em Novembro foi ela a doente. Na última década quase duplicaram os acidentes com os profissionais da saúde – os enfermeiros são as maiores vítimas.
"Foi há um ano que apanhei o maior susto em seis anos de enfermagem. Trabalho num serviço de cirurgia geral, cardio-torácica e urologia. Um doente paraplégico estava a tentar tirar os tubos e os cateteres para conseguir libertar-se e sair da cama e eu tentei impedi-lo porque ia afectar o estado de saúde dele. Quis acudi-lo mas ele transferiu a raiva toda que sentia por estar ali preso e puxou-me o braço, torceu-me a mão direita, o punho e os dedos". Margarida entrou em pânico. "Não fugi, não chorei. A minha preocupação foi libertar-me: era eu a puxar o meu braço de um lado e ele do outro, nenhum de nós o largava; foram segundos que pareceram horas". Só o socorro de outros membros da equipa a conseguiu libertar da força "brutal" daquele homem desesperado, deitado na marquesa.
"Continuei a trabalhar nessa noite, depois de tomar um comprimido para as dores e de ligar a mão, a tratar desse e de outros doentes. Depois fui encaminhada para o seguro e estive de baixa um mês a fazer fisioterapia, antes da operação. Diagnosticaram-me uma lesão da fibrocartilagem triangular (que une os tendões do punho) e fiquei com uma incapacidade de 20%. Mas sem dúvida que o que mais me custou foi estar em casa sem poder trabalhar: esse período trouxe-me tristeza e instabilidade emocional". Margarida tem agora 30 anos. "Vi-me assim, limitada, com esta idade, e essa possibilidade foi muito difícil de suportar". Não apresentou, contudo, queixa do doente. "Acima de tudo temos que saber ver para além da situação e tentar justificar as atitudes com a doença, para não nos sentirmos revoltados com a pessoa que nos agrediu".
UM ANO DE TERROR
Mas nem só as agressões ajudam a contar os capítulos mais negros da profissão. O risco de contrair doenças no contacto com os doentes está sempre presente nos cuidados que diariamente têm os profissionais, embora nem sempre se consigam evitar. Bruno Gomes teve um verdadeiro baptismo de fogo no primeiro ano de profissão. O susto que apanhou não foi apenas o maior susto que teve enquanto enfermeiro – foi o maior susto em 27 anos de vida.
"Trabalho na unidade de infecto-contagiosas no Hospital Dona Estefânia. Tínhamos estado a picar uma criança com VIH e estava a correr tudo bem, até porque usamos todas as protecções necessárias e temos muito cuidado. Mas conforme ponho a agulha no contentor para a deitar fora ela faz um trampolim, dá a volta e espeta--se no meu dedo através da luva – agora o sistema tem uma abertura diferente". Naquele momento caiu-lhe o coração.
"Fiquei tão assustado que não tive capacidade de pensar nisso no momento. Accionámos todo o mecanismo para começar a terapêutica anti-retroviral e aí o medo veio em força. O próprio tratamento tinha efeitos secundários: tive pesadelos horríveis, os piores de que me recordo, e uma tremenda falta de concentração que me complicava muito a vida quando estava a fazer noites: parecia que as letras me fugiam do papel. Tive a sorte de ter o apoio da equipa que trabalhava comigo e que muito me ajudou".
Mas a ansiedade do desfecho manteve-se por longo tempo. "Fiz os testes do VIH quatro vezes: o primeiro foi no dia do acidente e o último um ano depois, por causa do período de janela (o vírus nem sempre se manifesta logo). Foi um ano que custou muito a passar, sempre com muito medo dos resultados, o ano mais difícil de todos. Imaginar, aos 25 anos, a possibilidade de ter VIH não era fácil".
Mas o último teste trouxe a melhor notícia de todas: deu negativo. Bruno suspirou de alívio. Estava finalmente livre do fantasma que lhe consumia o peito e a vida. "Acho que as coisas más têm de acontecer por alguma razão e por isso quando soube que não tinha contraído o vírus avancei com o pedido de casamento à minha namorada, a Sofia, com quem já namorava há cinco anos e que sempre esteve do meu lado, a dar-me força". A cerimónia, que celebrou o amor e as boas notícias, veio a acontecer um ano depois do último teste.
PORMENORES
MARÇO
É o mês que regista maior número destes acidentes de trabalho. A segunda-feira é o dia mais atingido.
RECURSOS
Sindicato dos Enfermeiros acusa a falta de recursos como a causa das picadas e não a falta de cuidado.
HOSPITAIS
Os hospitais foram as unidades de saúde que registaram maior número de acidentes de trabalho: 4593.
(Revista Domingo do Correio da Manhã, http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/outros/domingo/sustos-de-bata-branca)
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